Busca sem resultado
jusbrasil.com.br
20 de Abril de 2024
    Adicione tópicos

    Artigo: "Justiça e Sorte - A Dimensão Salomônica dos Acordos Judiciais", de autoria da juíza Luciane Cardoso Barzotto

    INTRODUÇÃO

    O juízo salomônico é aquele exclui a deliberação e o discurso. A racionalidade do juízo salomônico consiste em aceitar os limites da razão deliberativa em contextos de dúvida. O acordo judicial aparece, neste contexto, na sua natureza “salomônica”: uma decisão que é racional por transcender a razão.

    Divide-se o trabalho será dividida em duas partes. Na primeira, será exposta a natureza dos juízos salomônicos.1 Em seguida, verificamos, na natureza “salomônica” dos acordos no âmbito do processo judicial, um exercício de uma liberdade que é racional por desconfiar da razão.

    2. O JUÍZO SALOMÔNICO

    O juízo emitido pelo rei Salomão no célebre episódio bíblico manifesta os limites do conhecimento humano: na impossibilidade de determinar a verdade sobre os fatos, Salomão lança mão de um procedimento – cortar a criança disputada por duas mães ao meio - que encerra o caso sem a mediação de razões. Trata-se de uma decisão sem justificação. Um exemplo menos dramático de juízo salomônico é a decisão por sorteio.

    A ideia de sorteio ou de sorte nos julgamentos, embora publicamente escandalosa, é implicitamente admitida na prática social e judicial. Ela é verificada nas hipóteses de sorteio de jurados, distribuição aleatória dos feitos, designação do juiz para atuar na causa, revisão por parte de tal ou qual tribunal ou colegiado. Esta aceitação da presença do acaso e do imponderável não é uma rendição ao irracionalismo, mas uma atitude honesta acerca da condição humana:

    “La honestidad nos exige que reconozcamos a presencia de la incertidumbre y la incomensurabilidad, en vez de negarla o eludirla. Algunas decisiones serán arbitrarias y epistémicamente aleatorias al margen de lo que hagamos, por mucho que intentemos basarlas en razones. El azar regula gran parte de nuestras vidas, por mucho que intentemos eludirlo. La domesticacion del azar nos permite controlar los factores aleatorios del universo en la medida de lo posible, y ahuyentar a la vez el autoengaño. Los requerimientos de causación personal y autonomia se concilian en el uso consciente del azar para tomar decisiones cuando falla la argumentación racional. Aunque esta desolada vision puede perturbarnos, es preferible a una vida construida sobre la confortante falsedad de que siempre podemos saber qué hacer.2”

    3. SORTE E ACORDO

    O acordo nos processos judiciais é uma forma de antecipação aleatória da decisão final. Através deste meio de solução dos conflitos foge-se de uma decisão de conteúdo incerto. As partes apostam que o acordo garante melhor seus interesses do que uma decisão judicial futura de conteúdo duvidoso.

    Um acordo apóia-se na previsão de que a parte pode não vencer o litígio por razões alheias ao próprio direito reivindicado (dificuldades probatórias) ou, ainda, na incerteza quanto ao próprio direito (alterações na orientação jurisprudencial, por exemplo). Se a parte for convencida destas duas razões que imprimem vulnerabilidade à sua própria demanda, o objeto da pretensão torna-se algo suscetível de ser negociado em sua indeterminação.

    Ainda que não seja aceita a noção de sorte processual pelo senso comum, o acordo soluciona este fato: antecipa a demora dos procedimentos judiciais, limita no tempo a solução de determinadas controvérsias intermináveis e sujeitas à revisão, reduz a complexidade das disputas judiciais, diminui as consequências traumáticas e, por vezes, irreversíveis de uma lide.

    3. AS RAZÕES DO RACIONALISMO

    O racionalismo que prefere a decisão judicial ao acordo baseia-se em três argumentos: uma excessiva fixação na razão; a tentativa de evitar o sentimento de erro e arrependimento no futuro; o apego ao processo como um fim e não como um meio.

    O primeiro motivo diz respeito a uma fixação no uso da razão. As pessoas querem possuir razões para fazer o que fazem; um juiz racionalista compulsivo quer comprovar a melhor aptidão do pai ou da mãe para obter a guarda do filho, ainda que a criança aguarde por anos esta comprovação. Para o racionalista, deve-se aguardar a decisão ideal: a sentença bem motivada, corretamente articulada, criteriosamente demonstrada.

    O segundo motivo diz respeito à necessidade de reduzir as tensões antes da tomada de decisões que, para serem menos sofridas, devem parecer baseadas em razões superiores. O racionalismo quer, a qualquer preço, evitar o erro e o arrependimento no futuro. Ora, o excesso de zelo na obtenção da solução justa, não garante que o resultado conseguido numa demorada espera, seja, necessariamente, o mais satisfatório ou justo.

    Um terceiro motivo que impede a aceitação da antecipação da decisão final de um litígio por acordo diz respeito ao apego aos valores do procedimento. Se o processo é entendido como reflexo do sistema democrático, onde são garantidos os valores de igualdade e participação dos litigantes, este se justificaria por si mesmo. Tal argumento transforma o instrumento da jurisdição (processo, procedimento) em fim em si mesmo. Ao contrário, deve-se afirmar que os valores do formais do procedimento estão a serviço dos direitos e interesses dos jurisdicionados.

    4. AS RAZÕES PARA ALÉM DA RAZÃO

    As partes em um litígio judicial gostariam de poder demonstrar o próprio direito e vê-lo, assim, reconhecido. Contudo, a visão sobre o próprio direito talvez não seja efetivada na decisão final do processo. Por isso, mais que negar a razão, a adesão a um procedimento “aleatório” como o acordo, mostra ser, se não a solução mais racional, talvez a mais “razoável”3. A incalculabilidade da sentença obriga o agente que não quer aguardar passivamente uma intervenção em seus direitos e sua vida, a “lançar-se” (a sorte está lançada) em busca de um acordo. A impossibilidade de se estar completamente no âmbito do racional - calculável, previsível – não elimina a liberdade da parte. Esta pode reassumir o controle sobre o conflito no interior mesmo da imponderabilidade deste. Como diz um slogan contemporâneo, a melhor maneira de se prever o futuro é criá-lo.

    Ainda que o senso comum relute a admitir a possibilidade de decisões judiciais sem sentido e sentenças injustas, estas existem, e são impostas à parte. O acordo, ao contrário possui a vantagem de ser realizada pelos próprios interessados. Nesta solução auto-composta pelas partes do litígio, valoriza-se a liberdade das partes, e o controle sobre o próprio destino. O acordo judicial, como todo procedimento salomônico, sustenta, contra o racionalista, a advertência de Chesterton: “Louco não é o ser humano que perdeu a razão. Louco é o ser humano que perdeu tudo, menos a razão.”

    1 Jon ELSTER, Juicios salomonicos. Madri: Gedisa.

    2 ELSTER, Jon. Juicios salomonicos - las limitaciones de la racionalidad como principio de decisión. 2ª ed. Barcelona: Gedisa Editorial, 1995, p.106

    3 AARNIO, Aulis. Lo racional como razonable. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991, p.241.

    • Publicações6219
    • Seguidores631007
    Detalhes da publicação
    • Tipo do documentoNotícia
    • Visualizações1229
    De onde vêm as informações do Jusbrasil?
    Este conteúdo foi produzido e/ou disponibilizado por pessoas da Comunidade, que são responsáveis pelas respectivas opiniões. O Jusbrasil realiza a moderação do conteúdo de nossa Comunidade. Mesmo assim, caso entenda que o conteúdo deste artigo viole as Regras de Publicação, clique na opção "reportar" que o nosso time irá avaliar o relato e tomar as medidas cabíveis, se necessário. Conheça nossos Termos de uso e Regras de Publicação.
    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/artigo-justica-e-sorte-a-dimensao-salomonica-dos-acordos-judiciais-de-autoria-da-juiza-luciane-cardoso-barzotto/248264947

    Informações relacionadas

    Ian  Varella, Advogado
    Artigoshá 8 anos

    Quando a loja se recusa cumprir a oferta, saiba o que fazer.

    Espaço Vital
    Notíciashá 11 anos

    A versão gaúcha do episódio da Decisão Salomônica

    Editora Revista dos Tribunais
    Doutrinaano passado

    Anexo V. Resolução Cnj 303, de 18 de Dezembro de 2019 (Texto Compilado)

    Artigoshá 4 anos

    Embargos de declaração no novo CPC: o que você precisa saber.

    Advocacia Geral da União
    Notíciashá 5 anos

    Inauguração de nova sede da AGU em São Paulo garante economia de R$ 1 milhão por mês

    0 Comentários

    Faça um comentário construtivo para esse documento.

    Não use muitas letras maiúsculas, isso denota "GRITAR" ;)